“Sou brasileira, meu marido é haitiano e fomos deportados para o Haiti. Precisamos de ajuda para voltar ao Brasil. Temos uma filha e aqui está muito difícil. Nós três estamos com diarreia e gripados. Minha filha está tendo febre e vômitos. Aqui está difícil para falar, porque a internet é muito fraca”.
O contato com o Estadão foi um dos primeiros de Maria, de 32 anos, com alguém do Brasil depois de ter sido deportada dos EUA, para onde foi com a família. Eles pedem para não ter os nomes divulgados por medo.
A vida no Brasil
“Fui para o Brasil em 2016 e logo fiquei em São Paulo, onde conheci a Maria. Lá tivemos nossa filha. Ela está aqui (Haiti) agora por minha culpa. Sou haitiano, mas ela é brasileira. Ela e a nossa filha estão com o passaporte. Eu fui repatriado e elas estão juntas, mas quero que voltem. Estávamos vivendo na zona leste de São Paulo. Eu era vidraceiro e mecânico, trabalhava, tinha uma vida normal. A Maria também fazia alguns trabalhos. Depois, com a pandemia, virei vendedor ambulante e minha mulher também, mas era difícil manter a vida. A polícia vinha e pegava nossa mercadoria, corria atrás. Foi ficando pior. A gente abriu um CNPJ, mas não tinha mais dinheiro para pagar isso. Fomos ficando cheios de dívidas. Aí caímos nessa, perdemos tudo”.
Falando um português claro, com algumas palavras em espanhol e leve sotaque, o haitiano Carlos assume o telefone para contar com mais calma o que levou o casal a deixar o País e iniciar uma viagem de quase um mês até os EUA.
A saída para os EUA
“Vi que meus amigos tentaram e conseguiram chegar aos EUA, foi fácil. Decidimos tentar, a gente pensava que nos EUA haveria mais oportunidades. No dia 15, fomos para os EUA. Maria pegou um voo para o México. Precisei ir por outro caminho, porque não tinha visto, o meu passaporte está vencido. Recebi indicações de amigos de amigos que conseguiram chegar. Você sabe como é, tem gente que ajuda a te levar lá. A gente juntou o que tinha e decidimos ir. Do México, fomos aos EUA. Não demorou muito tempo, mas chegamos e já fomos deportados. Maria tem pais em São Paulo, mas eles não têm condições de ajudar. Avisamos quando saímos do Brasil e ficamos de avisar quando estivéssemos nos EUA, mas aí aconteceu isso”
O casal não relatou detalhes sobre como a filha se portou durante o trajeto, a todo momento os dois diziam que queriam preservar a menina e só tinham a preocupação de chegar em segurança aos EUA.
A deportação
“Os EUA tratam as pessoas pior que animais. O Brasil respeita os direitos humanos. Nos EUA, ficamos seis dias separados, em um espaço frio, sem comer, ou melhor, comendo só uma coisa que se chama tortilla. Aí colocaram a gente num ônibus e levaram para um aeroporto. O governo do Haiti tem um acordo com os EUA para que os haitianos sejam mandados de volta. Estávamos com os passaportes em mãos, tudo certinho. Não passamos por entrevista ou triagem que mostrasse que não tínhamos condição de ficar. Se eu quiser voltar aos EUA, eu volto, porque não tem nenhum processo contra mim, nada documentado. Pensava que os EUA eram o melhor país do mundo, mas não são. É pior que ditadura. E eles fizeram tudo escondido, de noite, nada pela manhã”
Assim que chegaram ao Haiti, o casal e a filha foram recebidos pela missão da Organização Internacional para Migrações no aeroporto de Porto Príncipe. De lá, foram para a casa da família de Carlos e não saíram mais por medo da violência. O Haiti vive uma turbulência política após o assassinato do presidente Jovenel Moise e dificuldades econômicas após um novo terremoto. A embaixada brasileira confirmou ao ‘Estadão’ ter tido “acesso a cópias dos documentos que, embora não verificadas, parecem autênticas”.
A vida no Haiti
“Aqui tem muito sequestro. Está muito perigoso, principalmente depois da morte do presidente. Poderíamos sair de casa e procurar a embaixada, mas tenho medo e falei para minha mulher não sair. Se ela colocar o pé fora de casa, vão ver que é estrangeira e ela pode ser sequestrada. Ela não fala o nosso idioma, não conseguiria se virar sozinha. Estou procurando ajuda para tirar ela e minha filha daqui o quanto antes. Não há voos diretos para o Brasil e isso torna tudo mais difícil, não sabemos o que fazer e como sair daqui. Elas estão aqui por minha culpa. Minha mãe tem 60 anos e meu pai morreu quando eu estava no Brasil. Saí do meu país para ajudar minha família no Haiti, mas não deu certo. Não vejo mais futuro aqui. Não tenho intenção de ficar. Aqui tem muita gente que foi deportada. Muitos nem procuram ajuda porque não sabem onde procurar. Não sei o que será do futuro dessas pessoas.”
O haitiano, com a voz trêmula e falando rapidamente com medo de a ligação cair, explica que, por sentir medo, não tem coragem de procurar a embaixada do Brasil.
Futuro
“Quando voltar ao Brasil, vou fazer um canal na internet para explicar isso tudo que passei e como estava errado ao querer deixar o País. Deixei o Brasil porque as condições não estavam boas, porque não tem política estável, lá todo mundo fica brigando sobre esquerda ou direita, mas não tem sentido. No Brasil, as pessoas te tratam direito, se alguém tem pão, divide com você. Peço agora que os brasileiros se unam e lutem por uma política estável, para ter comida e trabalho, isso já basta”. Antes de desligar para cuidar da filha que começa a chorar, o haitiano reforça que precisa voltar com a família ao Brasil.
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