As novas regras do PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), instituídas no final de 2021 por um decreto do governo federal, geraram um corre-corre em toda a cadeia de benefícios. Das empresas fornecedoras de vale-alimentação (VA) e vale-refeição (VR) àquelas que incluem esses vales no pacote de benefícios de seus funcionários, todas terão até maio de 2023 para se adaptar às mudanças.
Entre as principais delas estão o fim dos prazos de pagamento parcelados ou estendidos, que descaracterizam a natureza pré-paga desses benefícios, e a proibição do rebate, uma espécie de desconto dado pelas fornecedoras de vales ao RH das organizações e que acaba sendo compensado com a cobrança de taxas mais altas dos estabelecimentos credenciados. Esses, por sua vez, repassam o prejuízo a quem está na outra ponta da cadeia – os trabalhadores, que pagam mais caro para se alimentar.
Segundo Fernanda Zanetti, VP de digital banking da Creditas, que centraliza oito modalidades de benefícios corporativos em um único cartão, incluindo vale-alimentação e vale-refeição, a prática acabava redistribuindo parte do benefício do colaborador para a própria empresa. “Era um incentivo meio estranho porque, além de reduzir a concorrência no mercado, era mais interessante para a empresa do que para os funcionários”, afirma. “As empresas de VA e VR também tinham que pegar um percentual muito grande dos estabelecimentos para sustentar esse rebate, sendo que os RHs de empresas inscritas no PAT já recebem incentivo fiscal do governo para oferecer os vales”, acrescenta Viviane Sales, VP de Creditas@Work.
Outra alteração importante, de acordo com as executivas, é que agora bandeiras mais amplas, como Mastercard e Visa, também passarão a ser aceitas. “A gente acredita que essas mudanças vão trazer competitividade”, diz Viviane. “Permitindo essas bandeiras, abre a possibilidade para mais estabelecimentos aceitarem os vales, o que significa mais opções para o trabalhador.”
Para Jessica Srour, diretora-presidente da ABBT (Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador), outra regra importante envolvendo os vales veio em março deste ano, com a Medida Provisória 1.108, que estendeu a proibição do rebate a todos os contratos CLT, a empresa sendo ou não inscrita no PAT. A multa vai de R$ 5 mil a R$ 50 mil para quem não cumprir a norma.
Ela fala que a MP trouxe rédeas para uma figura jurídica que foi criada na Reforma Trabalhista de 2017, que é o auxílio-alimentação – um novo formato de benefício sem isenção tributária e que, por falta de definições claras, abriu brecha para que os valores fossem usados para outras finalidades. “De lá para cá, isso veio sem regra e concorrendo de forma desleal com os produtos do PAT”, argumenta. “Novas operadoras passaram a oferecer vouchers e cartões em que tudo é possível. Agora, com a MP, não pode mais comprar qualquer coisa. O gasto tem que ser com alimento.”
A diretora afirma que há duas facetas nesta análise. “Parece uma modernização a pessoa escolher como quer gastar o VA e o VR. Só que o governo não recolhe imposto (no caso do PAT) justamente para garantir que o trabalhador vai se alimentar”, exemplifica. “A MP veio para aproximar mais o auxílio-alimentação dos produtos do PAT, impondo multa às empresas que operacionalizarem esses valores para qualquer finalidade. Até porque corre o risco de o benefício passar a ser visto como adicional de salário a médio e longo prazos”, ela alerta, destacando que isso aconteceu em outros países.
“Os governos lá fora começaram a recolher imposto sobre, aí o benefício passou a incorporar o salário e deixou de existir. O PAT é o programa mais antigo e robusto que tem no País. Beneficia 22 milhões de trabalhadores e, indiretamente, as famílias. Estamos falando de mais de 40 milhões de brasileiros. Coletivamente é muito importante.”
Apesar de trazer alguns avanços, uma questão do decreto e da MP que ainda gera discórdia é a impossibilidade de migrar valores do VA para o VR e vice-versa. “Não existe flexibilidade para transferência de saldo entre cartões alimentação e refeição e nem o seu uso para os outros fins que não seja o de se alimentar”, explica Rodrigo Somogyi, diretor de produtos da Sodexo Benefícios e Incentivos, que trabalha com as duas soluções – o VA para compra de gêneros alimentícios em supermercados, açougues, hortifrutis e afins e o VR para refeições prontas em bares, lanchonetes, padarias, restaurantes e delivery, ambos regulamentados pela lei do PAT.
Para ele, porém, o novo modelo híbrido de trabalho mudou as regras. “Ao ter à disposição os dois benefícios, o colaborador pode optar pelo que é mais conveniente para o seu momento, já que estar em home office não significa ter tempo hábil para preparar a refeição, se alimentar, organizar a cozinha e fazer a pausa antes da retomada das atividades profissionais”, observa.
Copo meio cheio e meio vazio
A chefe de inovação da 99Jobs, Viviane Elias Moreira, acredita que o engessamento da transferência de valores não considera o contexto individual dos colaboradores. No cargo há 6 meses, ela fez a estruturação e implantação de uma série de benefícios de engajamento, como plano de saúde sem coparticipação dos funcionários, day off no aniversário, garantia de emendas de feriados nacionais e regionais e programa de parcerias com universidades, clubes de compras, parque aquático, spa e idiomas, entre outros. “Foram benefícios mais direcionados às demandas dos próprios funcionários”, diz a executiva. “Costumo dizer que um CNPJ é um conjunto de CPFs. Precisamos olhar para as reais necessidades das pessoas para ter um local de trabalho mais feliz, e os benefícios passam por isso.”
No caso do VA e do VR, Viviane fala que a 99Jobs já fez as adequações às regras. “Como empresa, para controle e mitigação de riscos, é uma mudança positiva porque garante mais assertividade e impede desvios para usos indevidos. Nesse sentido é um copo meio cheio”, afirma. “Mas para nós foi muito mais dolorido no sentido do entendimento das necessidades do colaborador. Em um momento de apagão de mão de obra e pessoas com novas necessidades, é um retrocesso porque está tirando poder econômico deles.”
A executiva cita exemplos como o de quem usa o valor do VR para juntar ao VA e fazer a compra do mês. “A pessoa está abrindo mão de comer em restaurantes para colocar comida em casa. Muita gente é assim”, afirma. “Os funcionários também trazem marmita para a empresa porque às vezes nem dá para comer fora com o valor do VR. Então se o benefício é flexível, ele pode somar e garantir o mês inteiro de abastecimento em casa”, acrescenta. “A lei é benéfica, mas ignora completamente essa parte pessoal do colaborador. Agora as empresas realmente vão ter que pensar em inovar na forma de conceder outros benefícios, com linha de budget para isso, num contexto econômico e social instável.”
Flexibilidade perdida
Outra que não considera a mudança como avanço é Alana Querino, supervisora de RH do Grupo Crowe Macro, atualmente com perto de 500 colaboradores. A empresa, que oferece um pacote básico de benefícios composto de assistência médica e odontológica, seguro de vida, vale-transporte, auxílio educação, reembolso órgão de classe, auxílio home office, auxílio creche e vale-refeição, a partir de agora vai ter que separar o valor do VR na plataforma desenvolvida pelo fornecedor.
“Pensando na comodidade dos profissionais, fornecíamos vale-refeição de forma flexível, em que era possível escolher como utilizar o valor disponibilizado no cartão”, conta a supervisora. “Com as novas regras do PAT, as empresas foram obrigadas a se adaptar e travar o saldo apenas para alimentação ou refeição. No nosso caso não foi necessária a troca do prestador de serviços, pois conseguimos definir como o saldo deve ser utilizado através da plataforma. Mas no contexto geral não enxergamos de forma positiva, pois os profissionais perderam a flexibilidade que tinham na utilização do benefício.”
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