Saia justa é algo pela qual a diplomacia brasileira tem passado com alguma frequência desde o início da crise entre Rússia e Ucrânia. O desencontro de declarações entre o que diz o Itamaraty e o que diz o presidente da República levou auxiliares de Jair Bolsonaro a esclarecer a embaixadores estrangeiros e autoridades de outros países que, em momentos divergentes, o que vale é a posição do Ministério das Relações Exteriores, e não os discursos do presidente.
Por causa desses sinais trocados, dois ministros de Bolsonaro tiveram de esclarecer essa questão na segunda-feira. Em entrevista à GloboNews, o chanceler Carlos França explicou que a posição do Brasil não é de neutralidade, e sim equilíbrio.
Ao ser entrevistado pela Bloomberg, em Nova York, a primeira pergunta que o ministro da Economia, Paulo Guedes, teve que responder foi sobre a neutralidade pregada por Bolsonaro. Guedes afirmou que o Brasil votou duas vezes pela condenação da invasão russa na ONU.
O Brasil no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas votou duas vezes e votará novamente para condenar a invasão da Ucrânia.
A mensagem é que a visão do presidente é a mais importante e que ele endossa as decisões do Itamaraty. No entanto, Bolsonaro, com seu estilo informal de falar, “nem sempre emprega as palavras com precisão”.
No domingo, dois dias depois de o Brasil condenar os ataques russos à Ucrânia no Conselho de Segurança, Bolsonaro defendeu a neutralidade. Disse que o ideal é não tomar partido e demonstrou preocupação com o preço dos fertilizantes, produtos que têm a Rússia entre os principais fornecedores para o agronegócio brasileiro.
Antes disso, às vésperas da viagem de Jair Bolsonaro a Moscou, em meados deste mês, o Itamaraty se esforçou para convencer o governo ucraniano e autoridades de outros países, como os Estados Unidos, de que o encontro entre o presidente brasileiro e o líder russo Vladimir Putin tinha o objetivo de discutir a agenda bilateral. Bolsonaro chegou a ser aconselhado a não falar sobre a Ucrânia, a não ser que Putin tocasse no assunto. A primeira coisa que disse no encontro é que era solidário à Rússia, sem dar detalhes a que se referia.
— Parece-me que o governo brasileiro está perdido, com um discurso extremamente ambíguo. Afinal, o que vale? O posicionamento do Brasil no Conselho de Segurança, que foi de condenação explícita à Rússia, ou a fala do presidente depois, que diz que o Brasil adotará a neutralidade? O voto não é de neutralidade, é de condenação — disse o cientista político Hussein Kalout, pesquisador em Havard e membro do Conselho Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Para Kalout, neste momento é impossível passar dois sinais: condenar a Rússia de um lado e, de outro, manter a parceria com Putin. Segundo ele, esse tipo de posicionamento deixa o Brasil extremamente vulnerável.
— Não somos um país pequeno para ter esse tipo de ambivalência no posicionamento e isso afetará a imagem do Brasil. Isso pode esmagar a reputação do Brasil. Enquanto o Itamaraty fala em condenação, o presidente hesita. Bolsonaro está, literalmente, minando a capacidade de o Itamaraty ser respeitado como uma instituição de Estado — afirmou.
Essa posição conflitante é reconhecida por interlocutores próximos a Bolsonaro. Segundo essas fontes, enquanto a área militar e os chamados “ideólogos” do governo queriam a condenação da Rússia, alguns integrantes da cúpula do Itamaraty preferiam manter a defesa de uma solução negociada. Com o agravamento da situação na Ucrânia e a pressão internacional, o Brasil endureceu o discurso na ONU.
— A posição do nosso representante no Conselho de Segurança está na linha da melhor tradição da diplomacia brasileira e poderia ser subscrita por representantes de sucessivos governos, de Sarney a Temer. Com Bolsonaro, o Itamaraty faz o que pode para conter os danos provocados pelo desastre diplomático que é o presidente. Seria melhor que ele se calasse — disse o ex-ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes.
Professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), o cientista político Guilherme Casarões explicou que o posicionamento neutro só faz sentido entre duas partes envolvidas num conflito de maneira mais ou menos simétrica: diante de uma guerra em que um lado agride e outro é agredido, a neutralidade somente favorece o mais forte.
A rigor, observou Casarões, a tradição diplomática do Brasil é regida, desde Barão do Rio Branco, pelo princípio da solução pacífica de controvérsias. Sempre que houve conflagrações militares, o país colocou-se contra o recurso à força e a favor da diplomacia.
— Neste caso, o silêncio frente aos ataques russos, unilaterais e sem respaldo algum do direito internacional, posiciona o Brasil como, se não alinhado, ao menos complacente com a ação do governo de Vladmir Putin. Isso tem a ver com a armadilha em que Bolsonaro colocou a si próprio e ao país: ao viajar a Moscou na véspera do conflito, assumiu certo posicionamento frente à Rússia que agora cobra seu preço —afirmou.
Segundo Casarões, esse cenário de hesitação reflete uma “profunda” disputa interna. Segundo ele, com declarações desencontradas do chanceler Carlos França, do ministro da Defesa Braga Netto, do vice-presidente Hamilton Mourão e do presidente Bolsonaro, ninguém sabe exatamente qual a posição oficial do Brasil nesse conflito.
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