A medida que a invasão russa da Ucrânia chega ao quarto mês, autoridades em Kiev expressaram temores de que uma “fadiga da guerra” possa prejudicar a disposição do Ocidente em ajudar o país militarmente. Com a Rússia mudando sua estratégia de combate para a artilharia e os países ocidentais voltando suas atenções para a crise global de energia e alimentos, a Ucrânia tem esgotado rapidamente suas munições e perdido cerca de 100 soldados por dia, e teme que esteja caminhando para perder o conflito.
Até então, a Ucrânia havia acumulado surpreendentes ganhos militares na guerra, forçando a Rússia a recuar sua ofensiva no leste do país. Analistas atribuem o sucesso à resposta rápida do ocidente em enviar ajuda militar para Kiev, além de impor duras sanções à Rússia que custou o investimento em aparatos de guerra Mas agora Moscou parece estar mudando a estratégia para uma guerra de artilharia, que vai exigir equipamentos mais sofisticados para a Ucrânia responder, tornando-a totalmente dependente dos envios ocidentais.
Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, o vice-chefe de inteligência militar da Ucrânia, Vadim Skibitski, disse que a Ucrânia está perdendo para a Rússia na linha de frente e depende quase exclusivamente de armas do Ocidente para manter sua defesa. “Esta é uma guerra de artilharia agora”, disse Skibitski. “Tudo agora depende do que [o Ocidente] nos dá ”
Segundo ele, a Ucrânia tem uma peça de artilharia para cada 10 a 15 peças de artilharia da Rússia. “Nossos parceiros ocidentais nos deram cerca de 10% do que eles têm”, afirmou. E acrescentou que a Ucrânia está usando de 5.000 a 6.000 tiros de artilharia por dia, o que coloca em cheque o recurso em um futuro próximo. “Nós quase esgotamos todas as nossas munições e agora estamos usando projéteis padrão da Otan calibre 155, disse.
“A Europa também está entregando projéteis de menor calibre, mas à medida que a Europa se cansa, a quantidade está ficando menor”, lamentou.
Além disso, a perda de soldados tem sido um alerta para a Ucrânia. Embora o país mantenha em segredo o seu número de perdas militares, o presidente Volodmir Zelenski disse na semana passada que entre 60 e 100 soldados tem morrido por dia no conflito e outros 500 se ferem. À BBC o conselheiro de Zelenski, Mikhailo Podoliak, disse que as perdas podem ser até maiores, de 100 a 200 militares por dia.
O ministro da Defesa ucraniano, Oleksi Reznikov, renovou seus apelos por mais ajuda militar na última quinta-feira, 9, para conseguir manter as defesas em Severodonetsk, que Zelenski disse ser fundamental para a luta pela região leste de Donbas. Reznikov disse que, embora estivesse grato pelo apoio ocidental, não estava “satisfeito com o ritmo e a quantidade de suprimentos de armas. Absolutamente não.”
Segundo analistas, o Kremlin pretende explorar justamente a possibilidade de que, com o conflito se arrastando e entrincheirando, haverá um possível declínio do interesse entre as potências ocidentais que podem pressionar a Ucrânia a um acordo.
Zelenski já se irritou com as sugestões ocidentais de que ele deveria aceitar algum tipo de compromisso. A Ucrânia, disse ele, decidirá seus próprios termos para a paz. “A fadiga está crescendo, as pessoas querem algum tipo de resultado [que seja benéfico] para si mesmas e nós queremos [outro] resultado para nós mesmos”, disse ele.
Uma proposta de paz italiana foi rejeitada, e o presidente francês Emmanuel Macron foi recebido com uma reação irada depois que ele foi citado dizendo que, embora a invasão de Putin tenha sido um “erro histórico”, as potências mundiais não deveriam “humilhar a Rússia quando a luta parar, podemos construir uma saída juntos por caminhos diplomáticos.” O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba, disse que tal conversa “só pode humilhar a França e todos os outros países que pedirem por isso”.
Mesmo uma observação do ex-secretário de Estado dos Estados Unidos Henry Kissinger de que a Ucrânia deveria considerar concessões territoriais provocou uma réplica de Zelenski de que era equivalente às potências europeias em 1938 deixar a Alemanha nazista reivindicar partes da Tchecoslováquia para conter a agressão de Adolf Hitler.
Estratégia russa
Na semana passada, membros da elite econômica russa que conversaram com o jornal americano The Washington Post sob condição de anonimato revelaram que a estratégia do presidente Vladimir Putin é se preparar para uma longa guerra de atrito, com objetivo de usar armas econômicas, como um bloqueio às exportações de grãos ucranianos, justamente para reduzir o apoio ocidental a Kiev.
Kiev quer expulsar a Rússia das áreas recém-capturadas no leste e sul da Ucrânia, bem como retomar a Crimeia, que Moscou anexou em 2014, e partes do Donbas sob controle de separatistas apoiados pelo Kremlin nos últimos oito anos. Cada mês de guerra custa à Ucrânia US$ 5 bilhões (R$ 24 bilhões), disse Volodmir Fesenko, analista político do think tank Penta Center, e isso “torna Kiev dependente da posição consolidada dos países ocidentais”.
A Ucrânia precisará de armamentos ainda mais avançados para garantir a vitória, juntamente com a determinação ocidental de manter a dor econômica sobre a Rússia para enfraquecer Moscou. “É óbvio que a Rússia está determinada a desgastar o Ocidente e agora está construindo sua estratégia na suposição de que os países ocidentais vão se cansar e gradualmente começar a mudar sua retórica militante para uma mais acomodatícia”, disse Fesenko em entrevista ao The New York Times.
Os EUA continuam a ajudar a Ucrânia, com o presidente Joe Biden dizendo na semana passada que Washington fornecerá sistemas avançados de foguetes e munições que permitirão atingir com mais precisão os principais alvos no campo de batalha. Em um artigo no The New York Times em 31 de maio, Biden disse: “Não vou pressionar o governo ucraniano – em privado ou público – a fazer concessões territoriais”.
A Ucrânia fez apelos por foguetes de longo alcance agora que a guerra está se tornando um conflito de artilharia. Esta semana, o conselheiro presidencial ucraniano Oleksi Arestovich disse ao The Guardian que a Ucrânia precisava de 60 lançadores de foguetes múltiplos – muito mais do que o prometido até agora pelos países.
A Alemanha, que enfrentou críticas de Kiev e de outros lugares pela hesitação inicial, prometeu seus sistemas de defesa aérea mais modernos até agora. “Não houve nada parecido, mesmo na Guerra Fria, quando a União Soviética parecia mais ameaçadora”, disse Nigel Gould-Davies, membro sênior para Rússia e Eurásia no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.
Embora ele não veja uma erosão significativa no “apoio enfático à Ucrânia”, Gould-Davies disse que “há indícios de diferentes tensões sobre quais deveriam ser os objetivos do Ocidente. Esses ainda não foram claramente definidos.”
As preocupações domésticas da Europa estão entrando no discurso, especialmente quando os preços da energia e a escassez de matérias-primas começam a afetar a economia das pessoas comuns que enfrentam alta nas contas de eletricidade, custos de combustível e preços de alimentos mais altos.
Embora os líderes europeus tenham saudado a decisão de bloquear 90% das exportações russas de petróleo até o final do ano como “um sucesso completo”, foram necessárias quatro semanas de negociações e incluíram uma concessão que permitia à Hungria, amplamente vista como o aliado mais próximo do Kremlin na UE, continuar as importações. São necessárias semanas a mais de ajustes políticos.
“Isso mostra que a unidade na Europa está diminuindo um pouco com a invasão russa”, disse Matteo Villa, analista do grupo de estudos ISPI em Milão. “Há esse tipo de fadiga se instalando entre os estados membros em encontrar novas maneiras de sancionar a Rússia e, claramente, dentro da União Europeia, há alguns países que estão cada vez menos dispostos a continuar com as sanções.’’
Desconfiada do impacto econômico de novas sanções energéticas, a Comissão Europeia sinalizou que não se apressará em propor novas medidas restritivas visando o gás russo. Os legisladores da UE também estão pedindo ajuda financeira para os cidadãos atingidos pelo aquecimento e aumento dos preços dos combustíveis para garantir que o apoio público à Ucrânia não diminua.
The Guardian