A marca de 15% das crianças vacinadas com a primeira dose contra a Covid, valorizada na terça-feira (8) pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, na verdade evidencia o ritmo lento de uma campanha muito aquém da capacidade do PNI (Programa Nacional de Imunizações).
Análise da reportagem mostra que o país demorou 23 dias para alcançar essa cobertura, no último fim de semana. Foi quase o triplo do tempo gasto por Canadá, Austrália, Argentina e Uruguai (8 a 9 dias), de acordo com os dados oficiais.
O levantamento aponta o Brasil como um dos últimos colocados no ranking proporcional dentre dez nações que disponibilizam o detalhamento por data e idade –Alemanha, EUA, França, Chile e Itália, além dos já citados.
A vacinação havia chegado a 16,9% do público-alvo até a quarta-feira (9), conforme os dados do Ministério da Saúde. Segundo o IBGE, há 20,5 milhões de crianças com idade entre 5 e 11 anos na população.
O país só aparece à frente da França, um dos principais palcos do ativismo antivacina na Europa (4,5% com a imunização parcial, ou seja, somente com a primeira dose). Pesquisa financiada pelo governo francês em dezembro revelou que dois terços dos pais de crianças dessa faixa etária eram contrários à vacinação dos filhos contra a Covid.
Mesmo em relação a países que também não decolaram no início da campanha, o Brasil apresenta números desfavoráveis por ter largado atrás. Estados Unidos e Itália, por exemplo, tiveram andamento similar nas primeiras semanas, mas já alcançam o dobro da cobertura brasileira, pois começaram as aplicações no ano passado.
A disparidade é ainda maior na comparação com Chile e Argentina. Os vizinhos sul-americanos autorizaram a vacinação infantil em setembro e outubro de 2021, respectivamente, e já imunizaram a maioria de suas crianças, inclusive com a segunda dose.
Em termos absolutos, o Brasil já era o terceiro com mais injeções aplicadas entre os dez países analisados: 3,4 milhões, atrás de Argentina (9 milhões) e Estados Unidos (15,8 milhões).
O ritmo, no entanto, é bem inferior ao potencial do PNI. Havendo doses, o Brasil tem a capacidade de imunizar 2,4 milhões de pessoas por dia, segundo o governo federal.
Esse número foi atingido e até superado 44 vezes no ano passado, considerando-se a média móvel de aplicações, durante a própria campanha contra o coronavírus. Ele representa 18 vezes mais do que a média diária de 132 mil vacinas infantis até o momento.
Especialistas consultados pela reportagem listaram diversos fatores que podem explicar a lentidão e a baixa cobertura.
Para Renato Kfouri, do departamento de imunizações da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), o principal deles é a oferta limitada de doses.
“Novamente começamos uma campanha sem vacinas. As convocações parciais, por grupos de idade ou comorbidades, desaceleram o processo. E há também uma distribuição desigual. São Paulo tinha um estoque da Coronavac e já vacinou metade das crianças, enquanto muitos municípios até hoje não receberam”, afirma.
O uso da vacina pediátrica da Pfizer foi aprovado em 16 de dezembro pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A primeira remessa, com 1,2 milhão de doses, chegou ao Brasil quase um mês depois, em 13 de janeiro.
Nesse intervalo, autoridades do governo federal promoveram ações de desestímulo à vacinação infantil.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou a promover ataques contra os técnicos da agência, e o ministro Queiroga, a afirmar erroneamente que as vacinas já haviam provocado milhares de mortes.
O cronograma do governo prevê a entrega de, ao todo, 20 milhões de unidades da Pfizer até março. Seria o suficiente para atender metade do público infantil, pois o esquema é o mesmo dos adultos, com duas doses em um intervalo de oito semanas.
No dia 20 de janeiro, foi aprovada também a inclusão da Coronavac na campanha para crianças a partir dos 6 anos e sem comorbidades. Segundo o Ministério, o país tinha 9 milhões de doses em estoque, e o Instituto Butantan possuía outras 7 milhões na geladeira.
Kfouri observa ainda que a vacinação foi iniciada durante a alta de casos associada à variante ômicron.
“A população foi muito infectada. Os adultos ficaram em isolamento, muitas crianças tiveram que esperar um período de quarentena antes da vacina [30 dias]. Embora tenhamos saído atrás, sem dúvidas vamos nos recuperar, pois nossa adesão e nosso teto de saturação são maiores do que em outros países.”
Ele ressalta ainda o atraso na digitação dos registros, que pode levar mais tempo em municípios menores e pouco informatizados. Segundo dados das secretarias estaduais coletados pelo consórcio dos veículos de imprensa, a cobertura na quarta-feira (9) era de 20%, três pontos percentuais acima dos números do ministério.
A coordenadora do comitê de imunizações da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), Rosana Richtmann, cita a desinformação como um dos principais problemas.
“Estamos com uma coisa chamada comunicose, que é a doença da comunicação. Os pais acabam sendo manipulados, são vítimas mais fáceis de fake news, incertezas, angústias. Isso é natural. Mas os efeitos adversos estão muito bem documentados mundo afora, e a vacina é muito segura”, afirma.
Pesquisas Datafolha mostraram que a adesão à vacina ou intenção de se vacinar chegou a 94% entre os adultos, enquanto o percentual de brasileiros que apoiavam a imunização de crianças em janeiro deste ano era menor: 79%. O levantamento também mostrou que, para a maioria da população, o presidente Bolsonaro agiu para atrapalhar a imunização infantil.
A vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Isabella Ballalai, concorda que a desinformação tem afetado a campanha e diz que os posicionamentos contrários das autoridades geraram desconfiança.
“A população está recebendo uma enorme quantidade de fake news. Vimos ainda alguns municípios exigindo assinaturas de termos de responsabilidade e não há essa recomendação. Isso só gera dúvidas e uma percepção de que a vacina seria perigosa. É um prejuízo enorme”, avalia.
Na semana passada, as prefeituras de Curitiba, Salvador e de cidades do interior do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul recuaram da exigência de consentimento cobrada aos pais.
Em consulta pública convocada em dezembro, o ministério havia defendido que as crianças só fossem vacinadas com prescrição médica.
A proposta foi rechaçada, mas textos publicados nos sites oficiais do governo ainda trazem trechos ressaltando, por exemplo, que “a vacinação dos pequenos não é obrigatória e os pais que decidirem imunizar seus filhos devem procurar a recomendação prévia de um médico”.
Ballalai destaca o Chile como a referência a ser observada, pelo fato de o país vizinho já ter alcançado uma ampla cobertura também com a Pfizer pediátrica e a Coronavac.
“Os dados do Chile [sobre as vacinas] foram analisados tecnicamente pela Anvisa. E são resultado não de estudos, mas da efetividade na prática, após milhões de doses aplicadas. Eles demonstraram a capacidade dessas vacinas em proteger e reduzir principalmente os casos graves, hospitalizações e óbitos, inclusive para a síndrome inflamatória multissistêmica”, observa.
Segundo a especialista, muitas pessoas ainda podem resistir à vacinação devido a uma percepção equivocada sobre um suposto baixo risco da Covid no público infantil.
Dados do Ministério da Saúde apontam que 27 mil crianças brasileiras já foram internadas com diagnóstico de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) confirmada pelo coronavírus. Destas, 1.544 morreram.
Já a síndrome inflamatória multissistêmica associada à Covid provocou 1.160 internações e 63 óbitos apenas entre crianças de 0 a 9 anos. “Não dá para negligenciar uma doença grave para a qual já existe proteção”, enfatiza.
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