Duas obras de pavimentação tocadas com R$ 42 milhões do Ministério da Agricultura têm indícios de direcionamento na licitação, segundo revela levantamento do UOL.
Os municípios para onde os recursos começaram a ser destinados com velocidade recorde são redutos eleitorais do ministro Carlos Fávaro (PSD-MT) em Mato Grosso.
Os contratos foram assinados pelas prefeituras de Canarana (R$ 26 milhões) e Querência (R$ 16 milhões), cidades de Mato Grosso a mais de 600 km da capital Cuiabá, no Vale do Araguaia. Os prefeitos desses municípios são aliados do ministro da Agricultura.
O UOL identificou ações que restringiram a participação de empresas na licitação de Canarana. Esse tipo de prática reduz ou anula a margem de desconto no valor de obras, além de indicar favorecimento das empresas vencedoras.
O contrato de Canarana
Um dos maiores com dinheiro do caixa do Ministério da Agricultura— obteve apenas 2% de desconto em relação ao valor estimado da obra. Querência “pegou carona” na licitação e assinou contrato com o mesmo consórcio.
Pagamento a jato
Ao todo, as obras relativas a rodovias em Canarana e Querência já receberam R$ 7,6 milhões. A liberação do dinheiro começou em setembro, apenas dois meses após a assinatura do convênio do ministério com as prefeituras, prazo considerado recorde para obras com recursos federais.
O estado de Carlos Fávaro é o destino do maior volume de recursos próprios do ministério neste ano: R$ 134 milhões (43% do total) entre os meses de julho e agosto. O ministro vem sendo criticado por privilegiar redutos eleitorais em seu estado. A origem da maior parte dessas verbas é o extinto orçamento secreto, barrado pelo STF em dezembro.
Procurado, o Ministério da Agricultura disse que a responsabilidade pelos processos de licitação é das prefeituras e negou privilégios a estados. O UOL procurou as prefeituras por email, telefone e WhatsApp, mas elas não responderam. O espaço segue aberto.
Uma licitação, dois contratos e um mesmo consórcio
O consórcio Agroestradas
Formado pelas empresas Enpa Engenharia e Parceria e Elsali Engenharia— venceu em maio a licitação da Prefeitura de Canarana, que deu direito a um contrato de R$ 26 milhões para serviços em rodovias internas do município.
Apenas uma empresa concorreu com o consórcio. Mesmo se equiparasse o preço dado pelas concorrentes, a empresa não ganharia porque não cumpriu item obrigatório do edital.
A Prefeitura de Querência, a 115 km de Canarana, pegou “carona” na licitação da vizinha —o modelo adotado, chamado ata de registro de preços, permite esse tipo de adesão— e assinou contrato de R$ 16 milhões com o mesmo consórcio.
Uma terceira cidade da região, Gaúcha do Norte, também realiza os trâmites para aderir à licitação com o mesmo consórcio. O valor previsto é de R$ 13 milhões.
Os indícios de irregularidades
A Prefeitura de Canarana adotou na licitação dois procedimentos que são tidos como sinal de alerta de restrição de competitividade por órgãos de controle:
A realização de pregão presencial
em que os concorrentes precisam comparecer fisicamente para participar da sessão da licitação;
A obrigatoriedade de visita prévia ao local da obra por um representante técnico da firma.
Em parecer interno, Walter Custódio da Silva, procurador do município, ressaltou esses dois pontos, mas não impediu o prosseguimento da licitação.
Ele recomendou que fosse verificado “se não seria o caso de um pregão eletrônico, pois a União geralmente exige essa modalidade nos convênios”. Um decreto de 2019 obriga a realização de pregão eletrônico com recursos federais a não ser em casos excepcionais “em que fique comprovada a inviabilidade técnica ou a desvantagem para a administração”.
Em um primeiro momento, a secretária de Obras, Eliane Felten, disse que a modalidade presencial seria mantida porque a licitação previa um convênio federal que nem sequer poderia se concretizar. Ou seja, não haveria necessidade de seguir as regras da União.
Depois, a prefeitura encomendou laudo (feito por empresa terceirizada) que apontou que o sinal de internet da prefeitura não era bom. O UOL levantou, contudo, que Canarana tem previsão de realizar 22 pregões eletrônicos neste ano.
Sobre a exigência de visita técnica, o procurador lembrou que jurisprudência recente do TCU (Tribunal de Contas da União), assim como a nova Lei de Licitações, de 2021, que está em período de implementação, falam na possibilidade de substituição por uma declaração do concorrente de que está ciente das condições do local da obra.
A secretária de Obras, no entanto, não abriu mão da exigência de visita, alegando que é um serviço “que exige que o licitante esteja a par da realidade dos locais”. Apenas as empresas Enpa e Elsali, que formaram o consórcio vencedor, realizaram as visitas técnicas.
Fiscal de obra é de partido do ministro
Apesar de não serem do PSD, partido de Carlos Fávaro, tanto o prefeito de Canarana, Fabio Faria (MDB), quanto o de Querência, Fernando Gorgen (União Brasil), têm demonstrado proximidade com o ministro.
No mês passado, o ministro visitou Canarana e gravou um vídeo para um site local elogiando Faria pela eficiência com os gastos com recursos federais. Afirmou ainda que apoiaria o prefeito em uma possível futura candidatura a deputado estadual.
Já Gorgen esteve em junho com Fávaro em Brasília.
O fiscal nomeado em Canarana como responsável pelo monitoramento das obras feitas pelo consórcio Agroestradas é Enísio Melato. Ele aparece como tesoureiro do PSD no município em um processo deste ano do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Mato Grosso.
O ministério negou qualquer influência na nomeação do fiscal, afirmando que a decisão cabe apenas ao município.
Somente entre julho e agosto, o Ministério da Agricultura destinou R$ 134 milhões do extinto orçamento secreto a 11 cidades de Mato Grosso —mais do que o dobro de Minas Gerais (R$ 65 milhões).
A maior parte do dinheiro é para obras de pavimentação.
Em nota, o ministério disse que “não confere privilégios a nenhum estado e/ou região do país, o que pode ser comprovado na quantidade de instrumentos celebrados com outros estados das regiões Sul e Sudeste, dentre outros registros celebrados”.
Empresa ré por improbidade
A Enpa, uma das empresas do Consórcio Agroestradas, foi criada na década de 1990 e se consolidou em contratos com o setor público, principalmente no Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).
De 2014 até hoje, recebeu R$ 408 milhões do governo federal –95% desse valor saiu dos cofres do Dnit para obras em estradas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Desde 2015, a empresa responde a uma ação de improbidade administrativa na Justiça Federal relativa a obras de pavimentação na rodovia BR-262 em Mato Grosso do Sul, contratadas pelo Dnit.
De acordo com o MPF (Ministério Público Federal), o serviço não foi finalizado, foram pagos R$ 18,2 milhões e, no trecho realizado, “a pista foi entregue em situação lastimável”.
A firma chegou a ter os bens bloqueados, mas a decisão foi revertida. O processo segue em andamento na 1ª Vara Federal de Três Lagoas (MS).
Desde 2016, a Enpa também está em processo de recuperação judicial.
A firma foi fundada por Lázaro Queiroz Borges que, entre 2017 e 2018, foi assessor especial do Ministério da Agricultura, na gestão de Blairo Maggi no governo Temer.
Atualmente, porém, o único proprietário é João Borges de Oliveira Júnior. Ele também é um dos donos da Elsali, a outra empresa que faz parte do consórcio vencedor em Canarana.
As empresas do consórcio foram procuradas por telefone e WhatsApp, mas não houve retorno.
Licitação ‘premonitória’
Um ponto incomum na licitação em Canarana é que ela foi realizada sem que sequer houvesse a garantia de que o convênio para o envio de recursos do Ministério da Agricultura seria assinado. Ou seja, os concorrentes interessados em participar do pregão não tinham oficialmente nem mesmo a certeza de que as obras iriam ser realizadas.
Fazer licitação antes da assinatura do convênio não é ilegal, mas é bastante raro entre os municípios até pela dificuldade de atrair interessados.
O resultado do pregão, com o consórcio Agroestradas como vencedor, saiu em 19 de maio. No entanto, a proposta de Canarana para o Ministério da Agricultura solicitando o dinheiro para a obra foi registrada apenas em 15 de junho, segundo o site de convênios do governo federal.
A efetiva assinatura do convênio só aconteceu em 20 de julho. O valor, de R$ 26 milhões, foi bem menor do que o licitado pela prefeitura (R$ 54,7 milhões). A verba obtida equivale, portanto, a menos da metade da obra prevista na licitação.
O contrato com o consórcio foi assinado a jato, em 1º de agosto, apenas dez dias após a assinatura do convênio. A obra começou em 18 de agosto e, em pouco mais de um mês, foram pagos R$ 4,2 milhões.
O primeiro trecho executado é a estrada RM-011, que dá acesso à Fazenda Arariba, do Grupo Ferrari, gigante do agronegócio. Apesar de o conceito principal do programa do Ministério da Agricultura seja facilitar a ligação com propriedades de pequenos e médios produtores, a obra beneficia o grupo, sediado no interior de SP.
Em paralelo, a Prefeitura de Querência aderiu à licitação de Canarana. O contrato, de R$ 16 milhões, foi assinado em 2 de agosto. As obras começaram em seguida e as empresas já receberam R$ 3,4 milhões.
uol